Rotas integradas bioquímicas e termoquímicas para produção de biocombustíveis avançados

A produção de biocombustíveis e outros bioprodutos a partir de materiais lignocelulósicos – compostos de celulose, hemicelulose e lignina – tradicionalmente tem sido feita por meio de duas plataformas tecnológicas distintas.

A primeira, baseada em processos bioquímicos, nos quais as frações da biomassa, são convertidas em açúcares solúveis por meio de pré-tratamento e hidrólise enzimática. Essas frações solubilizadas são então transformadas em biocombustíveis como o etanol e o butanol por processos fermentativos utilizando micro-organismos, responsáveis por converter os açúcares em biocombustíveis por meio de uma sequência de reações metabólicas.

A segunda plataforma consiste em processos termoquímicos, no quais a biomassa é transformada em intermediários de baixo peso molecular por meio de pirólise ou gaseificação, produzindo bio-óleo ou gás de síntese, respectivamente. Esses intermediários são posteriormente transformados em biocombustíveis por processos de síntese Fischer-Tropisch, adequação de propriedades, upgrade e fracionamento. Ambas as plataformas possuem vantagens e desvantagens que influenciam nos seus indicadores de sustentabilidade.

Processos bioquímicos têm a vantagem de necessitarem equipamentos mais simples, uma vez que as reações de hidrólise enzimática e fermentação ocorrem normalmente a temperatura e pressão ambientes. Exceção ocorre para os reatores de pré-tratamento, que normalmente representam um ponto crítico em termos de investimento nos processos bioquímicos. Processos bioquímicos também necessitam grandes quantidades de energia térmica para a separação dos produtos dos meios de ração, que ocorrem em meio diluído, além de produzirem grandes quantidades de efluentes líquidos. Também possuem tempos de reação relativamente longos, e a conversão de alguns materiais pode ser baixa, como é o caso da lignina e dos produtos da sua degradação. Essa fração da biomassa pode permanecer em estado sólido, a depender do pré-tratamento utilizado, e produtos da solubilização parcial podem atuar como inibidores para as reações seguintes de hidrólise e fermentação, diminuindo, além da produtividade os rendimentos do processo.

Processos termoquímicos, por sua vez, normalmente requerem equipamentos mais complexos, visto que as reações ocorrem a temperaturas e pressões elevadas, mas essa desvantagem é em parte compensada por tempos de reação significativamente mais curtos. Outra característica dos processos termoquímicos é que todas as frações da biomassa lignocelulósica – celulose, hemicelulose e lignina – são convertidas. Apesar de possuírem grande conversão, esses processos também apresentam algumas ineficiências na transformação do carbono em produtos de interesse, como é o caso da formação de alcatrão e dióxido de carbono como produtos indesejados. A desconstrução térmica da biomassa por meio de processos de pirólise e gaseificação produz grandes quantidades de energia térmica e elétrica, e o processo normalmente é autossuficiente em termos de energia.

Como alternativa a esses processos convencionais de conversão de biomassa, a combinação dos processos termoquímicos e bioquímicos cria uma nova plataforma de conversão: processos híbridos que podem potencializar as sinergias entre os processos e fornecer alta eficiência de conversão de carbono para os produtos desejados.

Diversas propostas têm sido apresentadas para a integração dessas duas plataformas tecnológicas.Algumas dessas propostas baseiam-se em utilizar processos termoquímicos como uma etapa de processamento inicial da biomassa (Shen et al., 2015; Kumar et al., 2019). Essa estratégia visa superar a recalcitrância da biomassa, eliminando a necessidade dos reatores de pré-tratamento e o uso de coquetéis enzimáticos dos processos bioquímicos. Tanto a pirólise quanto a gaseificação podem ser utilizadas como primeira etapa do processo, que segue com a fermentação do bio-óleo ou do gás de síntese. O bio-óleo de pirólise apresenta em sua composição hidrocarbonetos que podem ser utilizados como combustíveis drop-in e compostos oxigenados como açúcares e ácidos carboxílicos, normalmente indesejados em um processo termoquímico standalone. Com o adequado processo de separação, esses compostos oxigenados podem servir de substrato para produção de biocombustíveis por processo fermentativo.

A fermentação também pode ser aplicada ao gás de síntese produzido no processo de gaseificação, com a vantagem de ser menos restritiva em termos da razão monóxido de carbono:hidrogênio e da presença de contaminantes que o processo de síntese Fischer-Tropsch, bem como apresentar maior seletividade. Vale lembrar, contudo, que em ambos os casos desafios adicionais para o processo de fermentação precisam ser superados, como por exemplo a alta presença de inibidores no bio-óleo de pirólise e problemas de transferência de massa para fermentação de compostos gasosos no caso da fermentação de gás de síntese.

Uma outra estratégia de integração de processos baseia-se na utilização de processos termoquímicos para processar a biomassa não convertida oriunda de processos bioquímicos (Klein et al., 2018). Essa é a estratégia que vem sendo estudada no projeto BioValue. Em um processo puramente bioquímico, a biomassa não solubilizada, composta fundamentalmente de lignina e da fração mais recalcitrante da celulose, é utilizada como combustível para o processo de cogeração, responsável por fornecer a energia necessária para o processo de conversão empregado. Alternativamente, essa biomassa residual do processo bioquímico pode servir como matéria-prima para produção adicional de biocombustíveis a partir de processos termoquímicos. Uma das vantagens é que essa biomassa não convertida no processo bioquímico é rica em lignina, a fração da biomassa lignocelulósica com menor teor de oxigênio, o que favorece os processos termoquímicos, aumentando sua eficiência de conversão. Outra vantagem reside nos excedentes de energia térmica e elétrica dos processos termoquímicos, que podem fornecer a energia necessária para o processo bioquímico, eliminando a necessidade das unidades de cogeração.

A integração dos processos bioquímicos e termoquímicos resultará numa maior produção de biocombustíveis a partir da mesma quantidade de biomassa e, certamente, representa um passo importante no sentindo de aumentar a sustentabilidade dos processos, buscando sempre menores impactos ambientais e melhores desempenhos econômicos e sociais.

Referências Bibliográficas Fundamentais

Shen et al., 2015: A thermochemical–biochemical hybrid processing of lignocellulosic biomass for producing fuels and chemicals

Kumar et al., 2019: A comprehensive review on thermochemical, biological, biochemical and hybrid conversion methods of bio-derived lignocellulosic molecules into renewable fuels

Klein et al., 2018: Techno-economic and environmental assessment of renewable jet fuel production in integrated Brazilian sugarcane biorefineries